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Ser Diferente no Sistema de Saúde

Ser Diferente no Sistema de Saúde

Existem muitos tipos de deficiência possíveis de ocorrer desde aquele momento mágico para toda mulher: o nascimento do filho. Outros tipos vão ganhando contornos no decorrer dos primeiros meses e anos de vida da criança, quando é percebido algo “diferente” no seu desenvolvimento. Há, ainda, muitas doenças que podem surgir ao longo da vida e comprometer certas funcionalidades necessárias para a autonomia, bem como as deficiências provenientes de sequelas de acidentes, que poderiam, inclusive, ser evitados. Assim, embora boa parte da inclusão social de pessoas com deficiência seja uma questão pura e simples de remoção de barreiras (físicas, metodológicas e de atitude), os pontos de contato com o sistema de saúde são cruciais. 

Se eu fosse capaz de explicar a complexidade de qualquer sistema de saúde em poucas linhas, diria tratar-se de um imenso mosaico que opera em várias dimensões (tal qual um holograma) onde o todo explica, em boa medida, as partes, que, por sua vez, funcionam de forma alheia, como universos à parte. Ou seja, todos os entes atuam com a urgência dos riscos inerentes à vida (individualmente) sem enxergar de forma clara algumas causas e consequências relacionadas entre si. Portanto, uma característica marcante desse sistema que muito nos afeta – como mães de crianças com algum tipo de deficiência – é a fragmentação e segmentação de serviços e entre profissionais de saúde. Existem poucos centros e instituições especializados no desenvolvimento de crianças que sejam integrados. A começar pelo diagnóstico, quando o mesmo não é evidente ou confirmado por meio de exame clínico ou laboratorial (caso da trissomia, da síndrome do X frágil, paralisia cerebral, hidrocefalia, entre tantas), as famílias percorrem verdadeira Via-crúcis para obtê-lo. Além disso, mesmo no caso de diagnóstico direto ou imediato, profissionais de saúde podem causar muitos danos emocionais por falta de capacitação e preparo quando vão informá-lo aos envolvidos, isto é, no momento que dão a notícia. 

Nico, meu segundo filho, é uma das milhões de crianças a dar sinais de que algo não vai bem com seu desenvolvimento, mas não sabemos do que se trata, ou se devemos nos preocupar ou não. No meu caso, fui eu que chamei a atenção do pediatra, antes mesmo dos seis meses de idade e ouvi: “Você está estressada, Flavia”. Para complicar nossa história, mudamos de país trazendo Nico aos sete meses e Camilo então com três anos recém feitos. Até assentar a poeira no novo país (encontrar casa, escola, receber a mudança, identificar profissionais para retornar a tratar de minha queixa), passaram-se mais 6 meses e Nico já estava com 14 meses. Não que eu tenha esperado seis meses. Mesmo durante o processo da mudança, cheguei a procurar dois pediatras que sugeriram que eu tomasse calmante e deixasse o Nico chorar, pois não era nada. Só que Nico não chorava, ele se esgoelava, soltava alaridos e eu não entendia o porquê. Além disso, achava muito estranho ele ter tido um furúnculo perianal e nunca reclamar de dor. Aliás, essa foi uma das coisas que mais me chamou atenção e ninguém me ouvia. Finalmente, encontrei um pediatra que me escutou e passou a pedir uma série de exames (a tal Via-crúcis), trazendo aquele esquema composto por agendar, fazer exame, pegar laudo, reunir todos os documentos numa pasta, e então recomeçar o mesmo circuito para outro exame e o seguinte, até avançar rumo às avaliações de profissionais renomados, mas já diante de nova fronteira: interface entre saúde e educação. Pronto! Lascou. Essa fronteira é verdadeira pororoca, encontro entre águas do mar e do rio com grandes e violentas ondas. Saúde e educação tem evidente relação direta, mas na prática parecem aqueles túneis entre os anexos dos ministérios em Brasília: você anda e anda, são lindos, mas a verdade é que você sai de um prédio e chega em outro totalmente diferente.  

Assim Nico, eu e nossa família começamos a transitar nas galáxias de psicopedagogos, psicomotricistas, fonoaudiólogos, psicólogos, musicoterapeutas, arteterapeutas, nutricionistas, e, claro, médicos! Quem é o maestro dessa importantíssima orquestra que agora vai ajudar seu filho a se desenvolver? A família, claro! Para não dizer que, em 95% dos casos, a mãe! Sim, porque desconheço estatística oficial, mas o índice de divórcios entre pais de crianças com deficiência é alto. A mãe, chefe de orquestra, que vai pegando a melodia enquanto rege, fala com um, fala com outro, lê, chora, se descabela, acredita e sabe que o filho não é nada do que está escrito, além de encontrar forças para seguir boa parte de seu instinto a reger e compor a música da vida de seu filho. Mas espere aí… ele não é e não deve ser o centro de tudo, existe o irmão ainda pequeno, tem marido, trabalho, festas, férias, alegrias… há vida na família inteira! 

Portanto, não pense que você está perdida por não entender como funciona esse sistema. Ele foi feito para não o conhecermos mesmo. 

Mas nem tudo está perdido: o Sistema Único de Saúde – nosso SUS – é um modelo de sistema de saúde que deveria ser orgulho para todos nós brasileiros. Seus princípios são a universalidade, a equidade e a integralidade. É um sistema muito bem concebido e que poderia, inclusive, contribuir para a redução da desigualdade social no país. Mas não é bem assim, pois infelizmente o SUS, da mesma maneira que outras políticas sociais do país, não dá conta do mosaico socioeconômico do Brasil. Daí decorrem tantas injustiças. 

Crianças com o Transtorno do Espectro do Autismo (T.E.A.) são pessoas possuidoras de muitos potenciais que só poderão aflorar se tiverem acesso ao tratamento adequado, ou seja, um conjunto de serviços integrados e coordenados para desenvolver a linguagem/comunicação, as habilidades motoras, a socialização/comportamento e sua capacidade cognitiva. O T.E.A. pode ser tratado e ter bons resultados sempre que as famílias tenham a sorte de transitar nos sistemas de saúde e educação sem se perder ou que tenham a sorte de encontrar amigos, profissionais e grupos que os acolham, ou melhor ainda, ambos os cenários. Fora isso, o prognóstico é, salvo raras exceções, desalentador. 

Por Flávia Poppe, Presidente Instituto JNG.

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